Os economistas João Rodrigues e Nuno Teles participam este fim de semana no Socialismo 2010. Neste texto, acham curioso que o apocalipse económico esteja a ser "anunciado pelas mesmas vozes, as que quase monopolizam o debate público, que até ao início da grande crise do capitalismo neoliberal, em 2007, tinham participado activamente na grande utopia de mercado que nos levou até ao actual desastre económico português e internacional".
Socialismo 2010, de 27 a 29 Agosto em Braga.
Para lá da economia-2012
Por JOÃO RODRIGUES e NUNO TELES *
Muitos economistas falam como se tivessem tido acesso à profecia que proclama o fim do mundo em 2012; profecia que se concretiza num cinema perto do leitor, cortesia de Hollywood. A radiografia da cena intelectual portuguesa, feita pelo filósofo João Cardoso Rosas, aplica-se-lhes na perfeição:
«Para nós o tempo tem um sentido, ou seja, decorre entre um qualquer alfa e um ómega final. Se, em certos momentos de optimismo social, o ómega é vivido como utopia, noutros é experienciado como apocalipse»i.
O apocalipse económico está mais na moda, mas curiosamente este é anunciado pelas mesmas vozes, as que quase monopolizam o debate público, que até ao início da grande crise do capitalismo neoliberal, em 2007, tinham participado activamente na grande utopia de mercado que nos levou até ao actual desastre económico português e internacional: um processo de integração económica marcado, entre outras coisas, pela liberalização financeira, por políticas públicas que fragilizaram o mundo do trabalho e por uma desatenção às necessidades dos sectores industriais.
Reduzir os salários?
A análise dos economistas-2012 tem sido focada numa mão cheia de dados macroeconómicos sobre a economia portuguesa. A par da obsessão com o «peso» do Estado, a falta de competitividade externa da economia portuguesa é um dos temas recorrentes entre a opinião publicada. Se a falta de competitividade é um facto, as análises convergem na atribuição desta aos crescentes custos laborais. Os salários em Portugal, ainda que dos mais baixos a nível europeu, seriam demasiado elevados. Neste ponto, o economista Vítor Bento, novo conselheiro de Estado nomeado por Cavaco Silva, destacou-se pela proposta de corte salarial generalizado de forma a promover as exportações nacionais. No seu livro, Vítor Bento compara a evolução dos custos unitários de trabalho nominais entre 1999 e 2007 na zona euro: Portugal aparece como um dos países onde estes custos mais cresceram desde a adesão ao euro, a par da Espanha e da Grécia e atrás da Irlanda
ii. No entanto, as diferentes taxas de inflação não são levadas em conta. Se o fossem, através do cálculo dos custos unitários do trabalho reais, observaríamos um decréscimo durante o mesmo período. O que esta diferença nos mostra é que, desde então, a repartição do rendimento entre capital e trabalho foi favorável ao primeiro, sinónimo do aumento da desigualdade, uma das mais altas da Europa. A causa dos diferenciais nos custos de trabalho não está, pois, no dinamismo da evolução salarial face aos restantes custos, mas sim na subida generalizada dos preços acima da média europeia.
Por outro lado, importa perceber quais os efeitos da prescrição do corte salarial e do mais eloquente congelamento do salário mínimo. Se a receita aponta para cortes generalizados nos salários nominais, o objectivo consiste na redução dos salários mais baixos, já que são estes os predominantes nos sectores que se pretende dinamizar, as indústrias exportadoras nacionais (por exemplo, os têxteis e o calçado). O elevado número de trabalhadores pobres engrossaria, o consumo interno (variável mais resistente no actual contexto de recessão) cairia e a crónica ineficiência de alguns dos sectores industriais sairia premiada. Acresce ainda que nada garante uma saída da crise pelas exportações num contexto em que a generalidade dos países siga por este caminho de cortes salariais generalizados e de contenção da procura interna, estratégia aliás facilitada pelo presente aumento do desemprego, poderoso mecanismo disciplinador das classes trabalhadoras. O que parece ter racionalidade (duvidosa) para cada país – promover as suas exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho e conter o consumo interno – gera um resultado global irracional sob a forma de um mercado interno europeu desequilibrado e contraído por um défice permanente de procura.
Através de uma análise estatística superficial e de prescrições simplistas, ignoram-se assim as raízes do problema. Se, de facto, Portugal perdeu competitividade externa nos últimos anos, tal deve-se, não às reivindicações dos trabalhadores, mas sim a uma entrada deficiente na moeda única, o euro: a chamada convergência nominal, no quadro da aceleração liberal da integração europeia, contribuiu para uma duradoura sobreapreciação da nossa moeda, que se prolongou com o euro. Esta opção enfraqueceu a competitividade do sector de bens transaccionáveis para exportação num período crucial e canalizou muito do esforço empresarial para o sector de bens não-transaccionáveis, como foi o caso da construção.
Os países da zona euro têm a mesma política monetária, mas diferentes realidades económicas. Nos anos que precederam o euro assistiu-se a uma convergência das diferentes taxas de inflação, devido aos critérios de adesão. No entanto, a partir da criação da moeda única as taxas de inflação começaram a divergir nos países aderentes. Esta insustentável miopia resultou de um entendimento estreito, partilhado pelos economistas convencionais, da exclusiva determinação da taxa de inflação pela política monetária do Banco Central Europeu (BCE). O resultado foi a degradação da estrutura de custos das economias com maiores taxas de inflação em relação às restantes.
A moeda única foi instituída sem a necessária coordenação no campo das restantes políticas de integração económica, simbolizada num orçamento comunitário residual, que não permite uma política europeia de redistribuição e de investimento contracíclico, na ausência de políticas fiscais, salariais e sociais convergentes e na impossibilidade de emissão de dívida pública europeia, o que seria o corolário lógico de um processo de integração monetária. A exigência de uma reconfiguração da política económica europeia tem, pois, que estar nos programas de quem pretende ultrapassar a crise no nosso país.
Os superávites de uns são os défices de outros…
Outro dos problemas recorrentemente invocados pelos economistas-2012 e pelos partidos da direita, o crescente endividamento externo associado a um défice da balança corrente, encontra as suas causas estruturais nos mesmos mecanismos atrás mencionados. Se, por um lado, o acesso ao crédito nos mercados financeiros foi facilitado pela adesão à moeda única, por outro, os crescentes diferenciais de custos na zona euro, aliados a uma estratégia do capital nacional – facilitada por políticas públicas erradas, de captura de sectores não expostos à concorrência externa (construção civil, distribuição, saúde, etc.) –, contribuíram para um galopante défice externo, traduzido em endividamento crescente. Contudo, se o endividamento é o resultado do comportamento dos agentes privados nacionais que data de há vários anos, o discurso dominante, numa mistificação que confunde amiúde endividamento externo com dívida pública, aponta os recentes esforços resultantes da crise internacional, traduzidos no aumento do défice orçamental (e logo da dívida pública) como responsável pelos nossos problemas.
Nesta tarefa política de transformação das consequências em causas, os economistas-2012 são auxiliados pelas inenarráveis agências de notação internacionais. Depois de terem ajudado a preparar a crise financeira com as suas avaliações laxistas dos títulos baseados no crédito imobiliário, cortam a notação da dívida pública emitida pelos governos, tornando mais difícil e oneroso o financiamento público e a saída da crise. O seu necessário desmantelamento e substituição por agências públicas internacionais de avaliação é bloqueado: fazem parte das estruturas de constrangimento criadas por décadas de hegemonia neoliberal e que se destinam a enviesar as políticas públicas.
Mais uma vez a prescrição, proposta por estas agências e repetida pelos economistas-2012, é o corte cego da despesa pública sem que se perceba claramente como seria reduzido o endividamento externo. Ou melhor, existe um único mecanismo credível neste processo: o efeito depressivo na restante economia, afectando todos os agentes económicos, de um corte da despesa e do investimento públicos. O endividamento externo, entendido como constrangimento futuro do nosso crescimento, seria paradoxalmente resolvido através da contracção presente do produto nacional. Dada os duradouros efeitos negativos na capacidade produtiva nacional de tal contracção, a destruição seria muito pouco criadora.
A resposta à fraca competitividade nacional, na origem dos nossos problemas mais estruturais, só pode ser elaborada através de uma efectiva reconversão industrial, focada nos bens transaccionáveis (exportáveis), prosseguida através de política públicas de protecção comercial e de incentivo aos sectores tecnologicamente mais avançados, apoiadas num acesso a preços controlados a bens essenciais às indústrias que queremos promover (crédito, energia, serviços públicos). Por outro lado, e seguindo a preciosa indicação do economista James Galbraith, é preciso sublinhar que regras laborais exigentes, que reforcem os
standards laborais, os contrapoderes sindicais e a negociação colectiva centralizada, ou regras ambientais avançadas, que impeçam a transferência de custos sociais para a comunidade, são armas de reconversão industrial que beneficiam os sectores mais produtivos e competitivos
iii. Este resultado requer necessariamente a requalificação e valorização do factor trabalho, traduzida em melhores salários.
Neste esforço, a União Europeia poderia desempenhar um papel decisivo. É urgente a criação de arranjos institucionais europeus que reduzam as assimetrias entre as diferentes economias e corrijam a existência crónica de brutais excedentes externos de certos países, como a Alemanha, face aos países cronicamente deficitários. Caso contrário, não só a moeda única, como também o próprio projecto europeu, estarão condenados ao fracasso.
As políticas necessárias exigem mudanças profundas que vão muito para lá do que foi aprovado no Tratado de Lisboa: da modificação do estatutos do BCE, por forma a que leve em linha de conta o emprego e a necessidade de uma política cambial competitiva, à possibilidade de se instituírem mecanismos de controlo de capitais e de protecção comercial entre a União Europeia e outros espaços, sobretudo aqueles que não respeitem regras mínimas em matéria de regulação financeira, ambiental e laboral, até à suspensão das regras da concorrência para que economias menos avançadas e muito dependentes, como a portuguesa, possam praticar uma politica industrial digna desse nome.
Do investimento à fiscalidade, há tanto para fazer
A maior crise económica desde a Grande Depressão dos anos 30 é, para os economistas-2012, um mero choque exógeno na economia portuguesa, destinado a ser ultrapassado mais cedo do que tarde. Este não seria um problema da economia portuguesa, mas sim das grandes economias mundiais. Tal atitude não mostra só miopia quanto à gravidade da actual crise, como traduz a incapacidade destes economistas de analisar as causas da crise e as formas de a ultrapassar. No caso português, a atenção é exclusivamente dedicada aos problemas que vêm de trás, nomeadamente à estagnação económica da última década, e para os quais estes economistas contribuíram decisivamente com as suas prescrições de flexibilização, ou seja, de criação de condições para fazer com que sejam os trabalhadores e a comunidade a ajustarem-se às supostas necessidades da economia.
É certo que a estratégia de recuperação da economia portuguesa deve ter em atenção os problemas estruturais. No entanto, o papel da presente crise não pode ser menorizado. Se o colapso do sistema financeiro global parece ter sido evitado, a recuperação da economia global está longe de ser uma realidade. As fontes de um crescimento económico sustentável e durável estão longe de ser identificadas. O Estado deve, pois, paralelamente à reconstrução de um sistema financeiro realmente útil à economia, assegurar que as políticas fiscal e monetária expansionistas continuem a desempenhar o seu papel de dinamização da economia e do emprego. Como assinalava a economista Christina Romer, actual líder do Council of Economic Advisors da administração de Barack Obama, uma reversão destas políticas públicas pode resultar num prolongamento da recessão, tal como aconteceu em 1937 nos Estados Unidos
iv. Então animada pela recuperação do crescimento económico, a Reserva Federal promoveu uma política de restrição da expansão monetária junto do sistema bancário de forma a controlar potenciais aumentos da taxa de inflação. Contudo, a memória da depressão ainda estava fresca e os bancos reagiram, aumentando as suas reservas voluntárias e reduzindo o crédito. O resultado foi o prolongamento da Grande Depressão.
As estratégias de dinamização da economia através do investimento público são, por isso, responsabilidade de todos os países. Portugal não pode furtar-se. No entanto, a direcção do investimento e as suas formas de financiamento devem ser adaptadas à realidade nacional. O esforço do Estado deve dirigir-se à promoção dos sectores potencialmente mais competitivos da economia internacional. Assim, as promessas de uma reconversão «verde» da economia apresentam-se como uma formidável oportunidade para, não só desenvolver uma economia livre de carbono, como também reduzir o nosso défice energético e, sobretudo, criar sectores industriais exportadores, tecnologicamente avançados.
Esta mudança também passa por transformações de fundo no regime fiscal e nas instituições que enquadram as relações laborais e por maior solidez política à medida que aumentar o seu grau de coordenação à escala europeia. Só assim se bloqueará a chantagem da fuga dos capitais e se ganhará autonomia para fazer o que tem de ser feito: do aumento da progressividade do sistema fiscal à taxação das transacções financeiras e dos consumos conspícuos e ambientalmente insustentáveis, passando pelo reforço da determinação, em sede de concertação social, das normas salariais, por forma a gerar uma distribuição mais igualitária dos rendimentos antes de impostos. As reformas necessárias requerem assim imaginação institucional, capacidade de forjar coligações políticas amplas e princípios realistas, ou seja, princípios compatíveis com o melhor conhecimento disponível. Para isso temos de superar a economia-2012 e as suas insustentáveis oscilações entre a utopia e o apocalipse.
i Jornal
i, 3 de Dezembro de 2009.
ii Vítor Bento,
Perceber a crise para encontrar o caminho, Bnomics, Lisboa, 2009.
iii James Galbraith,
The Predator State, Free Press, Nova Iorque, 2008.
iv The Economist, Londres, 18 de Junho de 2009.
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