Texto de Luís Farinha, investigador do Instituto de História Contemporânea da FSCH.
Ocaso da Primeira República (1924-1933)
“O meu propósito é ir contra a acção nefasta de todos os políticos e dos partidos e de pôr fim a uma ditadura de políticos irresponsáveis.”
General Gomes da Costa, comandante das forças militares que derrubaram a República, em 28 de Maio de 1926
Em finais de 1925, o poder político legalmente constituído (Parlamento, Governo e Presidente da República) mostrou-se incapaz de corresponder aos anseios de mudança e, muito menos, de pôr freio à fronda anticonstitucional e conspirativa que se havia constituído a partir de 1923.
Durante cerca de uma década (1923-1933), o país experimentou um clima de confronto institucional fora do comum, com eclosão de inúmeras intentonas militares e, depois do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926, de uma guerra civil larvar e intermitente, opondo a direita antiliberal e anticonstitucional aos sectores republicanos democráticos e liberais que resistiam à destruição do regime constitucional implantado em 1910. No final desse período, António de Oliveira Salazar (e os salazaristas) haviam conseguido federar as direitas antiliberais e antidemocráticas e implantado um regime corporativo, só nominalmente republicano. Do novo regime em construção tinham desaparecido os partidos políticos, os sindicatos livres, a liberdade de imprensa e a luta de classes manifestava-se de forma controlada, sujeita ao freio brutal de uma força conjugada das polícias políticas, dos tribunais especiais, com apoio declarado dos sectores da tropa que mantinham a Ditadura Militar.
Instigadora de uma participação na Primeira Grande Guerra (por razões de estratégia colonial e de reconhecimento internacional do novo regime), a Primeira República não conseguiu superar – como acontecera em praticamente toda a Europa -, os “anos loucos” que se seguiram ao primeiro conflito mundial. Uma inflação galopante, acompanhada pela desvalorização dramática do escudo e por uma crise de subsistências a que as epidemias (do tifo e da pneumónica) acrescentavam um toque de tragédia, fizeram dos anos do pós-guerra um período de difícil governabilidade, em regime de confronto partidário e constitucional.
Pouco preparados para a mudança, os partidos republicanos ensaiaram todas as soluções constitucionais, reformaram-se por cisão ou por fusão em novas formações partidárias, renovaram as lideranças, mas não conseguiram encontrar respostas adequadas para a complexa situação política do momento. Descontente com a “desordem” existente, a direita constitucional (agrupada no Partido Nacionalista em 1923) foi-se circunscrevendo a um campo praticamente insignificante: a maioria das forças de direita passou a competir fora do jogo democrático: alarmou o país com a imprensa que adquiriu e foi mudando editorialmente (à medida dos seus interesses), aliciou os militares vindos da Guerra (muito descontentes) para o golpismo militar e preparou-se para tomar o poder pela força das armas. Do ponto de vista institucional, a situação política continuava hegemonizada pelo Partido Democrático que, na ânsia de secar todas as tendências à sua esquerda, as mantinha sob a sua alçada ou as derrotava no Parlamento à primeira oportunidade, como aconteceu com os governos de Álvaro de Castro (1924) ou de José Domingues dos Santos (1925): “reinava”, mas não governava. Com esta política sectária, não só se perdia o partido como se afundava a República.
Em 28 de Maio de 1926, dois grandes blocos se juntaram para subverter a situação constitucional por golpe militar. Um, de cariz liberal e democrático, que pensava poder regenerar o regime através da implantação de uma “ditadura temporária” e a formação de um “governo extrapartidário de competências”, sem a obstrução do Parlamento. Passado algum tempo, defendia este bloco – liderado militarmente pelo comandante Mendes Cabeçadas e com o apoio político da União Liberal Republicana de Cunha Leal -, o País regressaria à normalidade constitucional, na base de um sistema político reequilibrado em torno de dois grandes blocos políticos, um à esquerda e outro à direita, os dois dispostos a disputar o poder através do jogo democrático.
Um outro bloco, antiliberal e antidemocrático, ansiava por uma ditadura definitiva, ou antes, pela constitucionalização de um Governo ditatorial, como aqueles que a Europa ia conhecendo, da Espanha à Polónia, passando pelo caso mais sui generis da Itália mussoliniana. Este bloco era apoiado pela direita anticonstitucional – alguma dela antirepublicana -, com grande sustentação na numerosa “tenentada” aquartelada e já sem a incumbência da Guerra, nos pequenos grupos de extrema-direita com simpatias fascistas e, muito especialmente, na reacção católica e conservadora das antigas classes afastadas do poder pela República em 1910. Elegeram um nome de prestígio para os comandar numa marcha militar de Braga a Lisboa – o general Gomes da Costa, um nome prestigiado do comando militar do país -, mas, na verdade, apenas a “farda” que escondia por detrás os verdadeiros detentores do poder e que tinham dado a conhecer o seu pensamento antiliberal na Revolta de 18 de Abril de 1925: Sinel de Cordes, Filomeno da Câmara, Raul Esteves, Óscar Carmona. Todos militares dispostos a hipotecar a República pluripartidária, as liberdades públicas e o regime em nome de uma “nova ordem”.
A República não estava ainda definitivamente perdida, porque, logo em Julho, a esquerda republicana se organizou para resistir e para desalojar pela força os ditadores. Durante mais de uma década, o Reviralho fez sair à rua quatro grandes revoltas, algumas, como a de 3-7 de Fevereiro de 1927, no Porto e em Lisboa, movimentando milhares de homens e armas, numa guerra civil, larvar e intermitente, de vida ou morte.
Em resposta a esta resistência, a Ditadura Militar armou-se de medidas excepcionais – Tribunais Militares Especiais, polícias políticas, censura, deportação e exílio de milhares de republicanos -, e ao fim de um quinqénio, substituira as instituições liberais e instalara uma nova elite política em todas as instâncias do poder.
Não sem luta e resistência, a primeira experiência de modernização e democratização do país ficaria adiada por quase meio século, até 25 de Abril de 1974.
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