O caso Lusoponte foi pioneiro em 20 anos de PPP em Portugal. O primeiro e o segundo contratos foram assinados pelo ministro Ferreira do Amaral sendo Primeiro Ministro Cavaco Silva. Ao contrato seguiram-se acordos de Reequilíbrio Financeiro (em número de nove até hoje). Todas estas renegociações foram gravosas para o Estado. Artigo de Alexandre Romeiras e José Carlos Ferreira, publicado em Iniciativa para uma auditoria cidadã à dívida
O processo Lusoponte teve início em 1992, sendo ministro das Obras Públicas Ferreira do Amaral e Cavaco Silva Primeiro Ministro. Ponte Vasco da Gama – Foto de Morgaine /Flickr/wikimedia
De acordo com o Livro Verde da Comissão Europeia (COM327/2004), uma PPP pode ser definida como sendo “a forma de cooperação entre as autoridades públicas e as empresas, tendo por objetivo assegurar o financiamento, a construção, a renovação, a gestão ou a manutenção de uma infraestrutura ou a prestação de um serviço”.
As PPP (Parcerias Público Privadas) não são obra do diabo. Esta forma de realizar um grande projeto de interesse público pode antecipar a disponibilidade de uma infraestrutura ou serviço, permite evitar despesa pública em projetos autossustentados, isto é, praticamente a custo zero para o Estado. O pagamento seria feito pelos utilizadores dessas infraestruturas ou serviços, através por exemplo de portagens, taxas moderadoras e outros.
Mas as PPP permitem também desorçamentar (“esconder” um gasto público retirando-o do Orçamento Geral do Estado e do escrutínio público), ou facilitar a transferência de dinheiros públicos para privados à custa do cidadão contribuinte e aí revela-se o inferno onde podemos cair todos, incluindo filhos e netos.
Estima-se em 50 mil milhões de euros o valor dos encargos com PPP que foram comprometidos até 2050 (atingindo-se por exemplo um nível médio ano de 1.500 milhões entre 2014 e 2023), estando muitos destes projetos associados a parcerias ou concessões com duração de 30 a 40 anos.
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As concessões são também uma forma de PPP, onde geralmente se inclui uma componente significativa de financiamento privado, na forma de capital e/ou dívida assumida pela banca e pelos mercados de capitais.
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Portugal é um campeão europeu de PPP (em relação com o PIB) situando-se no topo da tabela segundo os dados internacionais de Project Finance.
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O caso Lusoponte foi pioneiro em 20 anos de PPP em Portugal. O processo Lusoponte teve início em 1992, sendo o primeiro e o segundo contratos assinados respetivamente em 1994 e 1995 pelo ministro Ferreira do Amaral sendo Primeiro Ministro Cavaco Silva. A partir deste primeiro passo partiu-se para o desenvolvimento massivo de PPP em diversos setores de atividade: saúde, energia, ambiente, ferroviário, rodoviário.
O valor do investimento inicialmente previsto para a construção da Ponte Vasco da Gama era de 867 milhões de Euros, tendo aumentado para 897 milhões Euros, com a seguinte distribuição dos recursos financeiros: Fundo de Coesão da União Europeia: 35% (319 milhões de Euros), cedência das portagens da ponte 25 de Abril, 6% (5 milhões de Euros), empréstimo do Banco Europeu de Investimento 33% (299 milhões de Euros), Estado e outros acionistas 26% (229 milhões de Euros).
Repartição de riscos
Todos os manuais de boas práticas em matéria de PPP apontam para a necessidade de uma repartição de riscos equilibrada entre o concedente Estado e o Concessionário, sendo que o contrato Lusoponte previa o termo da concessão quando fosse atingido o número de 2.250 milhões de passagens (nos dois sentidos, nas duas pontes).
4 O contrato incluía também a manutenção da ponte 25 de Abril com o respetivo risco de tráfego integralmente atribuído à concessionária (incluindo possível redução e/ou uso de outras formas de travessia), assim como cláusulas de rescisão.
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O contrato refere que haveria lugar a reequilíbrio financeiro em vários casos (modificações impostas pelo Estado) e também em casos de força maior (todos os eventos imprevisíveis e irresistíveis).
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Ao contrato seguiram-se acordos de Reequilíbrio Financeiro (em número de nove até hoje) e ainda antes da assinatura do contrato de concessão, já o Estado atribuía uma verba de 42 milhões de euros à Lusoponte para a compensar por um aumento de taxas de juro. No entanto, os benefícios de taxas de juro mais baratas reverteram sempre e apenas para a Lusoponte.
Ao longo do processo ocorreu ainda uma grande alteração – o Acordo Global de Reequilíbrio Financeiro de 2000.
Nesse acordo o risco de tráfego foi eliminado e o prazo contratual passou a ser fixo de 35 anos. Anteriormente a concessão tinha um prazo de duração variável, terminando desde que se verificassem, cumulativamente, “o pagamento integral dos empréstimos contraídos e o volume de tráfego total acumulado em ambas as travessias e nas duas direções atingisse 2.250 milhões de veículos” mas nunca poderia vigorar por um prazo superior a 33 anos. Estima-se que esta alteração aumente o prazo em 7 a 11 anos, o que corresponde a um encaixe pelo concessionário calculado, pelo Juiz jubilado do Tribunal de Contas, Carlos Moreno, em 558 milhões de euros nesse período.
No conjunto os reequilíbrios financeiros deram até agora à concessionária:
- compensação direta de 250 milhões de euros (Acordo Global);
- dispensa da manutenção da Ponte 25 de Abril, favorecendo a Lusoponte em valor estimado em 70 a 100 milhões;
- 160 milhões em compensações de reequilíbrio;
- 100 milhões para acessos à ponte;
- benefícios fiscais não quantificados.
Estes pagamentos ultrapassaram assim largamente 50% do valor global do projeto.
No futuro poderão sempre ocorrer novos reequilíbrios financeiros com pagamentos contingentes, de difícil previsão. Manuel Avelino Jesus, ex-membro da Comissão de Reavaliação das PPP, avança uma estimativa de aumentos de 20 a 30% para o conjunto das PPP.
Apesar destas diminuições de risco de tráfego e destes benefícios financeiros, o Estado aceitou que a taxa interna de rentabilidade do projeto (TIR) para os acionistas se mantivesse em 11,43%. Uma renda invejável para um investimento de tão reduzido risco. Em PPP de países pioneiros (Austrália, Estados Unidos) estas taxas são reajustadas regularmente consoante as variações de mercado, ocorrendo atualmente 4 a 5%.
Todas estas renegociações foram gravosas para o Estado, variando a qualificação da atuação dos agentes do Estado (conforme os autores), entre a incompetência, a inépcia, o desleixo, a ignorância, os erros e omissões, ou até “um conluio entre construtores, políticos e banqueiros”, como podemos ouvir num debate na SIC Notícias em julho passado entre Paulo Morais e Gomes Ferreira.
Haverá país na Europa com tão más práticas em matéria de PPP?
Um grupo restrito de grandes construtores e banqueiros domina talvez 90% das PPP em Portugal. Segundo a ficha para a Lusoponte disponível no InIR (Instituto de Infraestruturas Rodoviárias, IP), os acionistas eram em 2010 Mota Engil com 38%, VINCI com 37%, ATPCI com 17% e Teixeira Duarte com 8%.
Ligados a este grupo restrito surgem alguns decisores políticos. A Lusoponte, projeto fundador no desenho de várias peças do grande aspirador financeiro que foi sendo montado, apresenta dois casos notáveis de migração de altos responsáveis políticos: o então ministro Ferreira do Amaral que assinou o contrato Lusoponte nessa qualidade, presidindo depois (e até hoje) à Lusoponte e o então ministro Jorge Coelho (que o foi também nas Obras Públicas), passando mais tarde a CEO da Mota Engil.
Será que tinham razão os participantes no debate na SIC acima referido?
Comparador do Setor Público
Além do custo zero e da repartição equilibrada de riscos, as boas práticas internacionais, as normas comunitárias e a própria legislação portuguesa determinam a existência de um “comparador público”.
Não se trata de determinar se um projeto deve ou não realizar-se, mas se a forma de parceria com um privado é adequada e traz benefícios ao Estado.
Tem uma PPP em concreto mais mérito económico que a contratação tradicional?
O Comparador do Setor Público é o custo público base (a comparar com as propostas dos privados, se houver concurso) e deve incorporar os custos de construção e gestão pelo Estado, (de forma eficiente), incluindo os riscos do projeto e os ganhos de eficiência.
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Com todas as dificuldades de cálculo que possam existir, há que defender este instrumento legal, que ajuda a combater as más práticas verificadas em tantos e tantos casos e diminui com certeza uma fonte de corrupção. O Comparador Público permite matar uma PPP desastrosa ainda no ovo.
O Tribunal de Contas nos seus relatórios e auditorias permite identificar várias fugas à lei nesta matéria, as quais contribuíram para o atual cenário de endividamento por várias décadas. Nas PPP existentes há muitos casos de omissão e casos de Comparador manipulado (alguns casos no setor da saúde).
Profissionalização de equipas públicas
Ao fim de vinte anos de PPP o Estado aparece-nos indefeso ou muito fraco, incapaz de fazer frente à experiência de consultores e juristas dos parceiros privados, daí resultando contratos desfavoráveis ou que se vão degradando com sucessivas renegociações e até legislação que tende a enfraquecer a posição negocial do Estado apesar do que é proclamado nos seus preâmbulos. Os privados defendem bem o seu interesse. Quanto ao Estado, se as causas do desastre são outras, o seu nome não se pode pronunciar.
Têm sido utilizados em excesso consultores externos, gabinetes de advogados e outros, por vezes com conflitos de interesses, para elaborar contratos, renegociar e certamente para elaborar diplomas legais, ficando o Estado sem qualquer experiência acumulada.
É pois necessário fortalecer várias capacidades no Estado:
- avaliação técnica e financeira dos projetos;
- elaboração de contratos com riscos repartidos;
- poder negocial através de cláusulas de resgate ou outras formas de reversão;
- formas de refinanciamento;
- supervisão na vida do contrato, através de um sério acompanhamento permanente;
- controlo de todas as tentativas de apropriação de receitas públicas (no caso da Lusoponte, identificaram-se receitas “escondidas” pelo concessionário).
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Defende-se que só a profissionalização de juristas, técnicos e economistas, com formação de equipas especializadas, criando “escola” no Estado, poderá melhorar a situação, eventualmente tirar vantagens das PPP e no imediato procurar minimizar os “estragos” nas PPP em vigor.
No caso concreto da PPP Lusoponte, dever-se-ia equacionar o resgate da concessão, tendo em conta os reequilíbrios financeiros demasiado onerosos para o Estado, conforme cláusula contratual, até hoje nunca acionada.
Engenharia Financeira
Não se conhecendo acesso aos vários documentos financeiros contratuais (Anexo 3 ao Segundo Contrato, anexos I e II ao Acordo Quadro, anexos I e II ao Aditamento ao Acordo Quadro, Acordos I a IX de Reequilíbrio Financeiro, salvo alguma omissão...), o site da Lusoponte
http://www.lusoponte.pt explica-nos genericamente que este projeto foi financiado sob um esquema BOT – Build, Operate, Transfer, mistura de financiamentos por acionistas e bancos.
Os necessários 897M€ foram então suportados em 35% por Fundos Europeus de Coesão, 33% pelo Banco Europeu de Investimentos, 6% pelas portagens da Ponte 25 de Abril e os restantes 26% por “Acionistas, Governo, etc”
Não tinha então o Estado possibilidade de suportar a parte “Acionistas e etc”, portanto sempre inferior a 26%?
O refinanciamento de 2000 (associado ao “Grande Salto em Frente” do contrato), e ainda segundo o site da Lusoponte, produziu uma nova estrutura financeira:
- 30% pelo fundo de coesão, 29% pelo BEI, 11% por bancos comerciais, 5% pelas portagens da 25 de Abril, 6% pelos acionistas e 19% por outros.
Para completar esta análise a IAC gostaria de conhecer as taxas de juro de cada componente e os fluxos financeiros, o acesso aos documentos referidos e depois “recrutar” uma pequena legião de juristas e economistas, voluntários, claro, para bem avaliar o esquema “BOT reciclado”, permitindo responder à questão chave desta auditoria financeira:
E o contribuinte, quanto paga de juro por tudo isto? Quanto aumenta a dívida?
Decretos-Lei pós-modernos?
Nasceram muitas das PPP (e em especial o fundador caso Lusoponte) sem qualquer enquadramento legal nem orçamental, sendo o Tribunal de Contas aparentemente o único agente a fazer recomendações, após auditorias várias.
Decorreram assim 11 anos e muitas PPP nasceram, até que o DL86/2003 de 26abr mostra preocupação sobre a partilha de riscos, a necessidade de orçamentos plurianuais, o comparador do setor público e até a necessidade de criar competênciais no Estado para lidar com as PPP, bem como a boa avaliação de propostas, a fiscalização das parcerias e a criação de comissões para o seu acompanhamento global.
Tudo boas intenções e boas práticas!
O DL141/2006 de 27jul identifica no preâmbulo a necessidade de mais controlo financeiro, a falta de transferência de riscos para os privados, taxas de rendibilidade para os privados demasiado altas para os riscos assumidos, falta de partilha de benefícios financeiros pelo Estado e até receitas ocultas dos privados. O diagnóstico inclui a excessiva frequência de recurso a consultoria externa, alguma falta de transparência e uma baixa pressão concorrencial.
Não diríamos melhor!
Alguns dos artigos, no entanto, enfraquecem o diploma anterior e introduzem “portas” para vantagens dos privados, casos da política de indemnizações, da consagração do reequilíbrio financeiro, da possibilidade de dispensar a comissão de acompanhamento.
Finalmente o DL111/2012 de 22mai identifica no preâmbulo as descoordenações entre setores diversos do Estado, a falta de criação de experiência no Estado, o excesso de consultores externos, o agravamento dos encargos públicos, a necessidade de acompanhar as boas práticas da Europa e do resto do mundo em matéria de PPP. Do melhor!
É criada a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, com vastas competências.
Os processos relativos a PPP passarão a ser transparentes - publicitação obrigatória de vários documentos com elas relacionados. Tendo em conta as numerosas indisponibilidades que encontrámos no nosso trabalho, queremos acreditar que só a tenra idade do diploma impede a sua concretização... já que só entrou em vigor a 1 jul 2012.
Alguma “má vontade” da IAC identificou no Artº 48º, ponto 1, a aplicabilidade a todos os processos de parcerias, ainda que com contratos já celebrados, sem prejuízo dos números seguintes.
E fomos procurar. No ponto 5 do mesmo artigo, verificamos que não pode haver alterações aos contratos anteriores, nem derrogação de regras neles estabelecidas, nem modificações de procedimentos de parceria.
Afinal as 120 PPP vão continuar a sugar o nosso dinheiro.
Consultores em casa (ou causa) própria
Mandou a troika auditar as PPP, o que é louvável... A IAC tenta auditar as PPP como parcela importante da dívida (passada, atual e futura), procurando ilegitimidades e eventualmente formas de contrariar o que nelas é lesivo para os cidadãos contribuintes.
A Ernst & Young foi escolhida para auditar cerca de 60 PPP (apenas cerca de metade do universo deste tipo de contratos), por 250.000€, sendo que esta consultora tem (ou teve recentemente) como clientes várias das empresas envolvidas em parcerias objeto do trabalho adjudicado, e provavelmente mesmo na elaboração de contratos e renegociações, por parte dos privados.
A escolha não nos pareceu adequada, considerando óbvio um conflito de interesses e que a E&Y se iria auditar a si própria, pelo que contestámos junto da PGR a adjudicação, sem qualquer resultado.
Não tendo sido publicado o relatório da auditoria, a E&Y veio no entanto divulgar conclusões preliminares, com propostas muito interessantes... para os privados!
Alguns exemplos (entre os quais podemos reconhecer uns tantos que já foram experimentados , pelo menos no caso Lusoponte, que mais uma vez se revela percursor e fundador de doutrina):
- Privatização de algumas PPP, revogando os contratos
- Transferência de receitas de portagens para os privados
- Aumento dos prazos de concessão
- Redução da manutenção pelos privados
- Revisão das matrizes de risco
Estes consultores são amigos da onça! As medidas propostas favorecem os privados, aumentam os gastos do Estado e até pretendem alienar bens públicos por um lado. Por outro lado, nacionalizam os riscos privados.
O aspirador financeiro do nosso dinheiro ainda não estava completo?
1 Moreno, Carlos (2010),
Como o Estado gasta o nosso dinheiro, Leya, p. 51.
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