Agora os invasores trazem sorrisos ultra violeta que provocam queimaduras imediatas e pungentes.
Quando os invasores comparecem, os governos dizem, estejam à vontade que é tudo por conta da casa.
Num corredor de um supermercado um par de namorados estaciona para dar um beijo. Uma velha sai de casa à pressa para ir pagar a luz. Um tipo guincha de raiva à porta do tribunal contra a injustiça. Numa qualquer sala de professores comenta-se a avaliação. Uma ambulância histérica finta o trânsito e passa à frente. Na baixa da cidade fechou mais uma loja. Na televisão de um café passam cenas da Assembleia e um homem aproximou-se para ouvir melhor. Naquele cruzamento estão dois polícias a rir-se. A esta hora o banco já fechou. Ela chegou atrasada ao trabalho. Num recanto de um bairro uns miúdos jogam à bola. Queres ir tomar um café?
Uma luz bem feitinha e atlântica entorna-se em cima das casas.
Isto aqui é um país, não é um sítio. Isto aqui é um país adulto. Não parece mas é.
Nisto aqui há gente a morar, a viver, ou a tentar viver.
Neste território ocidental e marítimo há uma tradição de deixa andar; mas também há uma memória de vanguarda, quando se diz basta. Este país foi o segundo a implantar uma república, fechando as portas a séculos de monarquia, esse regime impróprio para consumo; este país foi uma das mais velhas ditaduras da Europa e um dia abriu-se de gente cravejada de vontades que se desamarraram; anos seguidos é capaz de andar naquela letargia, naquele faz que anda mas não anda, e depois, de repente, soltar-se numa ponte ou numa avenida.
Isto aqui não é um sítio. É um país.
Tem cidades e campos, tem gente.
A invasão está em marcha.
Das sete colinas de Lisboa à Ribeira no Porto, da escarpa nortenha à planície alentejana, do norte vagamente suevo ao sul marcadamente mourisco, do interior esvaziado ao litoral a transbordar de subúrbios mal amanhados, aí estão eles invisíveis a preparar a entrada, silenciosa e diligentemente.
Vão cuidar do trabalho e das férias, do vigor e da maleita; vão indicar-nos caminhos, sugerir saídas, dar-nos cabo do canastro e supostamente acabar com o défice.
O que é o défice?
Será esta coisa que nos amargura os dias, esta penúria, esta velhice maltratada, esta juventude aprisionada a querer soltar-se e a ser tolhida, será este estranho encolhimento dos salários que eram já tão apertados que mal se viam nos trinta quilómetros de dias que temos de cumprir…
O que é o défice, essa coisa inventada que nos destroça o tempo da nossa vida, essa abstracção económica que nos rasteira a possibilidade da decência, essa tramóia que nos escraviza em nome de coisa nenhuma…
Será que podemos deduzir nos impostos esta agonia, esta impaciência, este desnorte, esta farsa que somos obrigados a figurar, como espantalhos alarmados de braços abertos à espera da razia das culturas…
Isto aqui é um país verdadeiro e não aquela entidade ilusória retalhada pela avidez das feiras da finança. E tem gente. Gente verdadeira.
Os mecânicos da economia são os grandes promotores das avarias. São como bombeiros que ateiam incêndios.
Isto aqui é um país, não é um sítio. Isto aqui é um país, não é um laboratório. Vão testar as vossas medidas para outro planeta. Duvido que onde houver vida inteligente vos queiram lá, mas evaporem-se daqui. Vão curtir juros para outro lado.
Na luz mansa das cidades alegres já a gente se encontrou.
Isto aqui é um país com muitas ruas. Avenidas. Praças.
Perdemos há muito o prazer da segurança, o aprumo de um chão firme para pisar. Apesar das ruas. Das avenidas. Das praças. Falta-nos chão.
Estes cow-boys jogam à apanhada com países inteiros. Eles a cavalo e os governos, ou espécie de governos, a pé. Trazem laços apertados com que hão-de apanhar-nos. Estados e estadistas encolhem-se e obsequiosos dão-lhes as boas vindas. Há cansaço, fuga e cedências em tudo quanto é sítio. Quando se preparam para respirar, numa qualquer esquina aí estão eles a dizer, apanhei-te.
Estes jogos não se jogam sozinhos. Porque é que os ditos estados não acabam com o jogo?
É que isto aqui é um país. Não é um brinde.
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