
(1) Mais tarde que noutros modos de transporte, a ofensiva neoliberal contra o caminho de ferro é tão mais violenta quanto se trata de um sector muito regulamentado, porque submetido a imperativos de segurança de elevado nível e também porque o seu pessoal, na maioria qualificado e especializado, tem uma longa tradição de combatividade social. Para vencer as resistências, a Comissão Europeia (CE) produz um fluxo contínuo de documentos desde há 15 anos, sob a roupagem de uma retórica de "revitalização" do caminho de ferro, e na forma de "livros verdes" ou "brancos", de directivas e de regulamentos destinados a alargar, passo a passo, a abertura à concorrência das empresas ferroviárias públicas históricas. Estas esgotam-se, literalmente, na modificação sem descanso das suas organizações internas para tentarem se adaptar às orientações da CE, este esgotamento faz também parte do objectivo desejado. Assim, num aparente paradoxo, é pela aplicação de um verdadeiro Gosplan(2) que a desregulamentação é imposta. De facto, verifica-se na Europa neoliberal uma regra geral do desenvolvimento capitalista: a máquina administrativa e governamental devem funcionar em pleno para "fabricar o mercado". A mistificação da Comissão Europeia tem consistido, em primeiro lugar, na afirmação, sem dar a menor prova de demonstração económica, de que o "monopólio natural"(3) constituído por um sistema ferroviário deve ser limitado à infra-estrutura (as vias férreas). Impor dogmaticamente esta redução era o único meio de fazer entrar a concorrência no transporte ferroviário: separando a gestão dos serviços ferroviários da das infra-estruturas, tornando possível que comboios explorados por diferentes empresas rolem nas mesmas linhas. Esta separação nega as características do caminho de ferro, modo de transporte onde a circulação deve ser rigorosamente planificada porque se movem num sistema uni-dimensional. Um comboio, com efeito, tem apenas um único grau de liberdade de movimento numa linha, num dado sentido, ao contrário de um veículo rodoviário, que dispõe de dois graus de liberdade no plano, e ainda mais do que um avião, que dispõe de três graus de liberdade no espaço. As interacções extremamente fortes entre infraestrutura e móveis, nos planos técnico, da segurança e da eficácia levam a entender o caminho de ferro como um sistema integrado para procurar uma optimização global permanente. Graças à assimilação abusiva do carril aos meios rodoviário e aéreo, enquanto é mais realista comparar o caminho de ferro ao funicular ou ao teleférico, os ideólogos de Bruxelas e os seus apoiantes nacionais têm podido decretar que se pode e deve separar infraestruturas e móveis, afim de introduzir o "mercado" no próprio interior do sistema. A integração dos sistemas ferroviários foi contudo o resultado de mais de 150 anos de história técnico-económica, negada sem vergonha, pela Comissão Europeia(4). Esta assimilação conceptual de modos de transporte tão diferentes traduz incompetência, ingenuidade ou ideologia? Pergunta sem sentido, na medida em que a ideologia recorreu sempre à incompetência ingénua dos seus propagandistas para prosperar... Mas é errado supor que a posição da Comissão Europeia é apenas uma questão de ideologia, porque corresponde a uma necessidade que decorre das condições actuais do capitalismo, que conduzem os seus gestores a quererem apropriar-se das partes da esfera pública que eles julgam rentáveis. Em última análise, o saque do sector público corresponde à tentação permanente dos proprietários do capital de captarem o que eles consideram como uma "renda" indevidamente pública(5). A ideologia só aparece a posteriori sob a forma de uma panóplia de justificações convertidas em ucasses(6) pela Comissão, afim de permitir aos interesses privados sacarem potenciais lucros do sector público. A separação da infraestrutura e dos serviços a ela associados, figura imposta previamente à abertura à concorrência dos serviços, é um processo geral que envolve tanto a distribuição de gás ou de electricidade e as telecomunicações como o serviço ferroviário, sendo o conjunto designado pelos neoliberais pelo vocábulo genérico de "serviços em rede", afim de justificar um tratamento único. Esta denominação foi retomada em França sem qualquer análise crítica pelos diversos "peritos" da "Esquerda"; ora, independentemente da crítica geral do processo enquanto tal, trata-se de uma amálgama que ignora as especificidades da exploração do caminho de ferro, em que as redes e serviços são interdependentes. De facto, ao contrário da rede telefónica ou das redes de distribuição de gás ou de electricidade, uma rede ferroviária não é um simples "tubo", um instrumento puramente material e técnico, uma espécie de "caixa negra" para o utilizador final. Os passageiros e os transportadores de carga utilizam por si próprios as instalações ferroviárias e, em particular, os passageiros e as mercadorias circulam fisicamente na rede, enquanto que os consumidores de energia e os utilizadores do telefone são, em princípio, indiferentes às redes físicas que transportam os quilowatts-hora de electricidade, as unidades de comunicação sob a forma de fluxos de electrões, ou os metros cúbicos de gás. Entre os chamados "serviços em rede", só o caminho de ferro apresenta as características de sistema intrinsecamente integrado. Os métodos de "liberalização" aplicados pela Comissão Europeia, e as obrigações que daí decorrem para os Estados e os seus sistemas ferroviários, levam a uma extrema multiplicação dos actores. Em cada país da União Europeia, onde só se encontrava o Estado e o operador ferroviário histórico, em todo o lado nacionalizado, conta-se presentemente também: o gestor da infraestrutura, os "novos operadores" (isto é, os operadores ferroviários privados concorrentes), uma agência de segurança ferroviária, uma agência europeia encarregada de velar pela inter-operabilidade ferroviária (fixação de critérios técnicos que permitam aos comboios circular nos diferentes países da Europa), um organismo de controlo, um organismo para os inquéritos sobre os acidentes, um organismo de regulação que desempenha sobretudo o papel de supervisor do carácter não discriminatório da concorrência na rede, um organismo de certificação de segurança, diversas empresas de trabalhos públicos que se tornaram pequenos gestores das infraestruturas ferroviárias no quadro das "parcerias público-privadas" e sem dúvida isto não ficará por aqui... Esta enumeração digna de Prévert(7) pode parecer divertida; mas não o é quanto às consequências possíveis e mesmo prováveis. A burocracia europeia, cujos membros desprezam voluntariamente os técnicos da ferrovia, sempre suspeitos de negar os benefícios da concorrência, simplifica - é caso para o dizer - a necessidade de uma verdadeira lei dos sistemas técnicos: nestes, as zonas de fragilidade nos planos técnicos e da segurança são constituídos pelos interfaces. Ora, multiplicando os actores, portadores de interesses nem sempre convergentes, os ukasses de Bruxelas multiplicam-se a respeito dos interfaces. Estes bravos sabem o que querem: "A concorrência livre e não falseada"; sabem apenas o que querem destruir. Pode-se pensar na hipótese do que acontecerá quando a destruição das empresas públicas históricas de caminho de ferro tenha sido conduzida ao seu fim programado, a real necessidade de uma integração dos serviços e da infra-estrutura irá voltar, em nome de uma racionalidade económica e técnica que foi apenas provisoriamente posta de lado, por um eficiente desvio ideológico. Certamente, não restará então grande coisa dos estatutos sociais em vigor nestas empresas e os monopólios integrados reconstruídos serão... privados. Tradução de Carlos Santos 1 Este artigo é um capítulo do texto "Sur la 'libéralisation' du transport ferroviaire" ("Sobre a 'liberalização' do transporte ferroviário") publicado em Agosto de 2005 pela Attac-França, da autoria do grupo "Transportes" e de Mühlstein Philippe (engenheiro ferroviário). 2 Comité Estatal de Planeamento da antiga União Soviética que elaborava os famosos planos quinquenais. 3 A noção económica de monopólio natural confirma a incapacidade do mercado capitalista, assim que um serviço custa mais caro, quando fornecido por empresas privadas em concorrência do que por uma entidade única, apesar da compressão dos preços que é suposto resultar da concorrência. Destacam-se como monopólio natural os sectores de rendimentos crescentes (importantes economias de escala) onde os investimentos, pesados, tomam sentido numa visão a longo prazo que os coloca fora do horizonte de rentabilidade dos actores privados, e aqueles em que as actividades representam fortes efeitos sobre os outros sectores económicos da colectividade ("efeitos externos"), quer estes sejam positivos (ordenamento do território no caso dos transportes) ou negativos (impactos no ambiente), efeitos que o mercado capitalista não tem em conta. Os sectores do transporte ferroviário, tomados globalmente, mas também do gás e da electricidade, das telecomunicações, etc. possuem estas características. Lembramos que a alínea 9 do preâmbulo da Constituição francesa de 1946, retomado tal e qual no preâmbulo da Constituição da 5ª República e, como tal, parte integrante do "bloco de constitucionalidade" em vigor, estipula: "Qualquer bem, qualquer empresa, cuja exploração tem ou adquire o carácter de um serviço público nacional ou de um monopólio de facto, deve tornar-se propriedade da colectividade." 4 Esta negação da história caracteriza bem a Comissão porque os sistemas ferroviários mais eficientes do mundo num plano estritamente económico, o dos Estados Unidos para a carga e o do Japão para os passageiros, estão realmente privatizados, mas permanecem integrados. Esta situação resulta de uma escolha afirmada pelos seus dirigentes, que proclamam abertamente que a separação da infra-estrutura e a sua abertura forçada a serviços concorrentes é um absurdo técnico e económico. Isto não impede a Comissão de saudar o seu sucesso... persistindo sempre no seu dogma. 5 Supondo que ela existe, esta "renda" não seria indevida, pois tem como fonte o investimento público e, como tal, o dinheiro do contribuinte. Além disso, num serviço público, a contribuição dos serviços beneficiários não é uma "renda" porque contribui para assegurar a perequação tarifária (veja-se o preço único do selo) e para criar, ou manter, serviços pouco ou nada "rentáveis" em termos estritamente económicos. 6 Ucasses eram proclamações do czar ou do patriarca que que tinham força de lei no tempo da Rússia czarista. 7 Jacques Prévert - poeta francês (1900-1977) |
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