Ar, água, solo, saúde, conhecimento, segurança, trabalho, memória etc.: os “bens comuns” são o principal instrumento do ser e do viver juntos. E são centrais à realização do Bem Comum, representado pela existência do outro, defende o economista e cientista político italiano Riccardo Petrella
“A mercantilização da água, em particular, é totalmente inaceitável. Ela significa a dessacralização da vida”, Riccardo Petrella
Moisés Sbardelotto entrevista Riccardo Petrella. Tradução de Benno Dischinger, IHU (Instituto Humanitas Unisinos) On-line, 9 de maio de 2011
Vive-se hoje numa dupla cultura socio-económica: a cultura da conquista e do domínio, pela qual o mundo tem sido reduzido a uma série de mercados a conquistar, e a cultura do instrumento, para a qual o que conta não é a pessoa humana, mas sim a eficácia e o rendimento do objeto-mercadoria e do sistema. Por isso, “a economia actual é a negação do viver juntos. É um abuso de sentido utilizar o conceito de ‘economia’ para falar do sistema predatório atual”.
Em entrevista à IHU On-Line por e-mail, o economista e cientista político italiano Riccardo Petrella
*afirma que, nesse contexto, é necessário reafirmar o valor do “Bem Comum”, aquele “conjunto dos princípios; das regras; das instituições; e dos meios que uma sociedade se dá para permitir que todos os seus membros vivam digna e decentemente e que contribuam ao viver juntos no respeito às diversidades de cada um e em cooperação com as outras comunidades humanas”.
IHU On-Line – Em 2011 ocorre o 50º aniversário de um dos documentos oficiais da Igreja sobre questões sociais, a encíclica Mater et Magistra, de João XXIII. Qual era a situação política, económica e social do mundo que o papa procurou enfrentar com este texto, em particular naquele momento histórico?
Riccardo Petrella – O final dos anos 1950 e o início dos anos 1960 era um período caracterizado por grandes tensões internacionais ligadas à Guerra Fria entre os dois impérios hegemónicos mundiais (Estados Unidos e União Soviética). Os velhos impérios coloniais europeus estavam, então, no final de seus dias após as lutas de libertação nacional. Haviam nascido dezenas de novos Estados na África e na Ásia. Eram grandes as esperanças numa nova ordem internacional, embora estivessem “engaioladas” na divisão Leste-Oeste (capitalismo/comunismo). O Médio Oriente estava sempre em foco: como hoje, os direitos do povo palestiniano eram inteiramente negados. Seis países europeus haviam dado nascimento a uma pequena “Comunidade Europeia” sob a insígnia da integração económica e dos mercados. Era também o período das grandes greves operárias e das lutas camponesas, principalmente nos países da América Latina. Na Europa, a questão social era muito forte, porque os grupos económicos e sociais dominantes procuravam tirar o máximo de vantagem dos benefícios do “crescimento económico” sempre mais selvagem. No Ocidente começara a grande revolução tranquila de superação da velha cultura religiosa conservadora e da busca de um catolicismo aberto ao mundo. Os povos de confissão muçulmana continuavam “fechados” nos seus “territórios”. O vento mundial soprava em direção à mudança, em favor de novas ideias e novas soluções.
IHU On-Line – De que forma conceitos como justiça, equidade, subsidiaridade e bem comum, tão usados na encíclica, podem dialogar com a economia contemporânea?
Riccardo Petrella – A economia contemporânea é uma economia fundada sobre três poderes: o primado do capital financeiro; o papel hegemónico das empresas privadas; e o poder do mercado.
Segundo os princípios e os objectivos hoje predominantes, o valor de cada coisa (res) material e imaterial, natural e artificial, é mensurado em função da sua contribuição para a criação de riqueza para o capital, em particular o financeiro. Um “recurso humano”, uma floresta, um gene, um algoritmo que não contribui criando valor para o capital não vale nada. Ao contrário, o seu valor é elevado se a riqueza por eles criada para o capital for elevada. Não é por acaso que, a partir dos anos 1990, os grupos dominantes impuseram a “monetarização da natureza” (das florestas, do capital biótico, da água…) como principal instrumento de uma política de desenvolvimento sustentável, o que constitui uma das maiores mistificações ideológicas, científicas e políticas realizadas nas últimas décadas. Portanto, criar valor para o capital é considerado hoje, pela economia contemporânea, a principal função da criatividade individual e colectiva.
Nesse contexto, é opinião difundida que o principal sujeito de criação da riqueza é a empresa privada. A essa se atribui o papel de “produtora” de bem-estar, de progresso, de inovação, um papel que é, ao invés, negado ao Estado, aos poderes públicos, às instituições/empresas públicas, acusadas de serem organismos parasitários, ineficazes, desperdiçadoras de riqueza. Pensa-se que a empresa privada possui os saberes, as competências, o know-how necessário para assegurar o desenvolvimento e o crescimento económico. Pensa-se, outrossim, que a empresa privada, o capital privado, possui os recursos financeiros necessários para investir na criação dos bens e dos serviços indispensáveis e insubstituíveis para a vida. Ao Estado, o qual os grupos sociais dominantes de hoje dispensariam com prazer, confere-se somente o papel de enquadramento geral, sobretudo com o fim de garantir o livre operar do capital, da empresa e dos mercados. A exaltação da empresa privada alcançou nos últimos anos níveis paroxísticos, a ponto de fazer dizer a muitos governos que a sua função é aquela de serem pro-business.
Tudo isso, no “sagrado” respeito do mercado e dos seus mecanismos, sendo o mercado elevado a sujeito regulador supremo, indiscutível, do funcionamento da economia e da sociedade. Não há vida, não há salvação, dizem os grupos dominantes, fora do mercado. Recentemente, uma grande figura da social-democracia mundial, Felipe Gonzáles, afirmou que “não há democracia sem mercado”. Quando o mercado fala, os poderes públicos – afirma-se – devem ficar calados e respeitar as palavras do mercado. São os mercados financeiros e não os ministros das finanças que decidem sobre a política monetária e a política financeira do mundo. O mercado é considerado o instrumento mais apropriado e eficaz para assegurar a valorização ideal máxima dos recursos disponíveis e do intercâmbio dos bens e serviços.
À luz de tudo o que foi dito acima, é evidente que a economia contemporânea se conjuga mal com os princípios de justiça e de subsidiaridade e opera de maneira totalmente oposta à construção e ao desenvolvimento do bem comum.
Onde está, hoje – excepção feita para o caso de alguns países da América Latina –, a busca da justiça social, quando a tendência estrutural, imposta pela economia dominante, vai no sentido do desmantelamento geral do Estado do bem-estar, do Estado social, do Estado da segurança social, que foi uma das maiores conquistas humanas e sociais do século XX?
Onde está a justiça social quando, a partir de 1995, os poderes fortes da economia mundial e da comunidade internacional decidiram abandonar o objectivo fixado em 1974 de erradicação da pobreza absoluta no mundo até o ano 2000, para contentar-se com aquele da redução/redimensionamento da pobreza em 2015, após ter admitido que a economia contemporânea permitira que o número dos pobres absolutos se elevasse, no ano 2000, a 2 mil e 800 milhões de pessoas em vez de zero? E como se pode falar de justiça social nos Estados Unidos e na Europa, quando, em 2010, a riqueza produzida pelos dois continentes superou os 40 biliões de dólares, enquanto os dirigentes afirmam que não existem os recursos financeiros públicos para garantir os níveis de segurança e de protecção social do passado (quando os ditos continentes eram menos ricos do que agora!), enquanto é possível distribuir centenas de milhares de milhões de dólares em dividendos, bónus e prémios variados a qualquer milhar de empresários?
A realidade demonstra que os países mais ricos e poderosos do mundo, bem como os grupos sociais mais ricos dos países pobres, são incapazes de pensar e de praticar a justiça social. O que lhes interessa é o próprio crescimento económico, a própria competitividade, a própria riqueza.
Os três poderes sobre os quais está fundada a economia contemporânea têm “feito vencer” o capital, a empresa e o mercado, mas têm “feito perder” a sociedade. A prioridade conferida aos ditos poderes tem conduzido à afirmação de uma dupla cultura:
1) a cultura da conquista e do domínio. O mundo tem sido reduzido a uma série de mercados a conquistar. O que importa é vencer. Winning in the global economy (vencer na economia global) foi o título emblemático de um relatório do Conselho das Ciências do Canadá, de 1963. Desde então, a economia global se tingiu um pouquinho de verde (a Green economy), mas o princípio permanece o mesmo: vencer;
2) a cultura do instrumento. O que conta não é a pessoa humana, o viver juntos, mas sim a eficácia e o rendimento do objecto-mercadoria (o automóvel, o programa televisivo, o computador…) e do sistema (os mercados financeiros, as redes da Web…). A pessoa humana tornou-se um “recurso”, como o são os recursos naturais, os recursos tecnológicos, os capitais especulativos… Nesse sentido, o recurso, também humano, tem sido reduzido a um custo e a uma oportunidade de lucro a desfrutar.
IHU On-Line – A Doutrina Social da Igreja tem a sua definição de “bem comum”, manifestado também na Mater et Magistra. Mas, para o senhor, o que é o bem comum?
Riccardo Petrella – O “Bem Comum”, como confirmado pela experiência histórica, é o conjunto dos princípios (por exemplo, a igualdade entre todos os seres humanos com respeito ao direito à vida…); das regras (a democracia representativa fundada sobre o sufrágio universal…); das instituições (os parlamentos, as municipalidades, a magistratura, as escolas…) e dos meios (o sistema fiscal, por exemplo, a memória, os símbolos…) que uma sociedade se dá para permitir que todos os seus membros vivam digna e decentemente e que contribuam ao viver juntos no respeito das diversidades de cada um e em cooperação com as outras comunidades humanas.
Centrais à concreta realização do Bem Comum são os “bens comuns”, isto é, aqueles bens (e os serviços conexos) que são essenciais e insubstituíveis à vida e ao viver juntos, como o ar, a água, o solo, a saúde, o conhecimento, a segurança, a informação, o trabalho, a memória… Nesse sentido, os “bens comuns” fazem parte do campo dos direitos humanos e sociais, individuais e colectivos, e são, por definição, públicos e universais. Existem “bens comuns” privados, isto é, relativos a um sujeito específico, como uma cooperativa, uma cidade, uma congregação religiosa, um clube de futebol. Vale o mesmo para os bens comuns “locais”, ligados a uma colectividade territorial específica (uma região, um Estado, um continente…). Esses bens não possuem, no entanto, a qualidade de serem essenciais e insubstituíveis para a vida e para o viver juntos em geral.
Os bens comuns são o principal instrumento do ser e do viver juntos. Não pertencem ao campo das escolhas individuais e/ou colectivas. Eles são inerentes ao existir e ao viver juntos. Nesse sentido, o bem comum fundamental é representado pela existência do outro. O outro não é somente o outro humano, embora o outro humano seja aquilo que tem mais valor estruturante com respeito à socialidade dos seres humanos. O outro é também o mundo não humano (por outro lado, sempre mais “man made”). Por isso é possível, há alguns anos, falar de “sustentabilidade global” da vida. A sustentabilidade implica a centralidade irrenunciável das relações de alteridade (entre humanos e humanos, e entre humanos e a natureza).
O objecto do Bem Comum é a riqueza (a vida) colectiva (o viver juntos). Hoje estamos na obrigação de (re)construir o (pouco de) bem comum que o Estado social, o welfare, havia prometido e desenvolvido.
Para tal fim é necessário (re)construir a economia, isto é, o ‘oikos nomos’ que em grego significa as “regras da casa”. O desmantelamento da “res publica” destruiu a economia. A economia actual é a negação do viver juntos. É um abuso de sentido utilizar o conceito de “economia” para falar do sistema predatório actual.
IHU On-Line – Diz o pontífice: “A confiança recíproca entre os homens e os Estados só pode nascer e consolidar-se através do reconhecimento e do respeito pela ordem moral. A ordem moral não pode existir sem Deus” (n.206-207). De que modo essa ordem moral pode ser experimentada e concretizada na actual situação socioeconómica? É possível?
Riccardo Petrella – A ordem moral actual é intrinsecamente utilitarista, materialista, oportunista, individualista, elitista, excludente, violenta. Na actual situação socioeconómica, a chamada “responsabilidade social da empresa”, a “ética do business” ou a tese sobre o “consumidor responsável” são principalmente fumo nos olhos. Certamente, podem encontrar-se aqui e lá exemplos de empresas, principalmente pequenas e médias, cujos dirigentes procuram “respeitar” alguns princípios humanos e sociais. Trata-se, porém, de fenómenos limitados: é o caso dos operadores activos no “comércio justo”, no “banco ético”, nas “finanças sociais”, na “empresa social”.
IHU On-Line – Como o senhor vê a relação entre trabalho, remuneração e economia? Como adequar – como o propõe João XXIII – o “desenvolvimento económico” e o “progresso social”?
Riccardo Petrella – Reconstruir a economia, reafirmar o direito à vida para todos, repromover o viver juntos, passa, a meu ver, por meio de uma nova fase de construção da “sociedade dos bens comuns”, uma sociedade tanto a nível “local” como “mundial”, fundada sobre o reconhecimento do outro como condição da nossa própria existência e sobre a promoção da riqueza colectiva, no respeito dos direitos/deveres das gerações futuras.
Entre os principais passos a serem cumpridos, parece-me que devem figurar: o reconhecimento da água, do ar, das florestas, do sol, do conhecimento, da saúde e do trabalho como bens comuns públicos e mundiais; e a definição e realização de uma nova arquitectura financeira (reinventar as finanças e o sistema fiscal público) e política (em particular, a afirmação da humanidade como sujeito jurídico e político. Passar da Organização das Nações Unidas – ONU à Organização Mundial da Humanidade – OMU).
Nesse contexto, o trabalho deve ser redefinido como uma função social, como um processo de concepção e de criação, acima de tudo, da riqueza colectiva, dos bens comuns, da segurança e melhoria do viver juntos e, depois, de maneira complementar, como um processo de criação de riqueza individual. Até que o trabalho seja, juntamente com os princípios humanos e sociais de base, o fundamento concreto das “regras da casa”, a economia, o acesso ao trabalho deve fazer parte integral dos direitos humanos e sobre isso deve ser construído o sistema de promoção e redistribuição da riqueza comum. Os princípios que hoje governam o trabalho são de todo contrários à justiça social e ao viver juntos. Consequentemente, também a renda representa na economia actual uma deformação estrutural daquele que deveria ser o conceito de “remuneração” justa e apropriada da contribuição do trabalho à criação dos bens comuns e do Bem Comum. As actuais desigualdades de rendimento, sempre maiores, entre os seres humanos e os países representam uma violência sistemática perpetrada, deliberadamente, em confronto com os direitos à vida para todos. Eles constituem uma declaração de guerra contra o viver juntos. Hoje a riqueza é produzida para fazer crescer o valor do capital privado e é redistribuída principalmente a favor dos rendimentos do capital, em detrimento dos rendimentos do trabalho. É urgente reestruturar o sistema fiscal que, actualmente, favorece a evasão fiscal, a ilegalidade e as classes ricas, penalizando as classes pobres e o trabalho honesto e regular. O sistema fiscal progressivo e redistributivo deverá ser redefinido a níveis nacional, internacional e mundial.
IHU On-Line – Outro conceito analisado pelo papa é a “propriedade”. Como o senhor percebe a diferença entre propriedade pública e propriedade privada? Como podemos entender estes conceitos à luz do clima económico atual?
Riccardo Petrella – Como foi assinalado acima, a distinção basilar refere-se aos bens públicos (e serviços conexos) e aos bens privados. Os primeiros têm como destino final o de permitir e garantir o direito à vida para todos e o viver juntos. Não podem, portanto, ser objecto de apropriação privada nem ser submetidos aos mecanismos de mercado. Eles fazem parte da responsabilidade da colectividade e devem ser financiados, governados e geridos por organismos públicos, fundados sobre a real e efectiva participação dos cidadãos nas decisões.
A sua indisponibilidade à apropriação privada e ao mercado os torna livres da submissão à lógica do rendimento financeiro, isto é, à criação de valor para o capital privado. Para os bens comuns públicos, a medida do seu valor é dada pela contribuição que eles aportam à criação das condições necessárias e suficientes para permitir a todos terem acesso a uma vida decente e digna. O governo dos bens comuns públicos é, por definição, objecto de uma forte cooperação e solidariedade entre os povos e as comunidades humanas. Quanto mais os bens comuns públicos forem reconhecidos e o forem por todos, menos as causas de conflitos e de guerras entre grupos sociais, coletividades territoriais e Estados terão razão de existir.
A apropriação privada dos bens essenciais e insubstituíveis para a vida e o viver juntos é fonte de conflitos, de violências e de guerras. Não há paz entre os povos se ditos bens podem ser apropriados por uns em detrimento dos outros. A economia de justiça, a economia justa, passa através dos bens comuns públicos. Os processos atuais de privatização de quase todos os bens da Terra e dos seres humanos têm conduzido à mercantilização generalizada da vida. A mercantilização da água, em particular, é totalmente inaceitável. Ela significa a dessacralização da vida.
IHU On-Line – Diversas são as encíclicas que falam da questão social: Rerum Novarum (1891), Quadragesimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961), Populorum Progressio (1967), Octagesima Adveniens (1971), Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987), Centesimus Annus (1991), Caritas in Veritate (2009). Como o senhor avalia os principais pontos defendidos pela Doutrina Social da Igreja? Os seus fundamentos económicos são discutíveis?
Riccardo Petrella – A meu ver, a Igreja jamais deveria ter aceitado e jamais deveria aceitar a privatização e a mercantilização dos bens comuns essenciais e insubstituíveis para a vida e o viver juntos que foram analisados acima.
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